Moeda Comum entre Brasil e Argentina, traz a perda de soberania Nacional, e o passe-livre para o adiantamento da unificação das moedas no Mercosul e no mundo de forma digital à longo prazo


A ideia de criar uma moeda comum para transações comerciais e financeiras entre Brasil e Argentina é um dos principais assuntos da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao país vizinho. A proposta não é nova e foi bastante criticada por opositores, principalmente em razão da crise financeira que atravessa o país governado por Alberto Fernández e que poderia contaminar a economia brasileira.


A discussão gira em torno da criação de um mecanismo facilitador para trocas comerciais entre países, porém sem a substituição das moedas em circulação, como chegou a ser aventado no governo de Jair Bolsonaro (PL). A sugestão é que a unidade comum de troca receba o nome de "sur" (sul, em espanhol).


Na segunda-feira (23), em entrevista coletiva, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e seu homólogo argentino, Sergio Massa, reforçaram que a proposta de moeda comum difere do conceito de moeda única, como é o caso do euro, utilizado em 20 países da União Europeia.


"Tínhamos uma série de mecanismos que deixaram de funcionar. Agora, estamos criando uma forma de atender às demandas, um meio de pagamento comum entre os dois países, que não dependa da situação cambiária de cada país", disse o ministro brasileiro.






Embora a iniciativa ainda esteja em fase de estudos, no ano passado Haddad assinou um artigo no jornal "Folha de S.Paulo" em que apresentou uma proposta de criação de uma moeda sul-americana. O texto foi redigido em conjunto com o atual secretário-executivo do Ministério da Fazenda, o economista Gabriel Galípolo.


"O início de um processo de integração monetária na região é capaz de inserir uma nova dinâmica à consolidação do bloco econômico, ao oferecer aos países as vantagens do acesso e gestão compartilhada de uma moeda com maior liquidez, válida para relações com economias que, juntas, representam maior peso no mercado global", diz trecho do texto.


Segundo os autores, a experiência brasileira com a Unidade Real de Valor (URV), que serviu como referência na transição do cruzeiro real para o real, poderia subsidiar um paradigma à criação da sur.


A moeda seria emitida por um banco central sul-americano, com uma capitalização inicial feita pelos países-membros, proporcional às suas respectivas participações no comércio regional. "A capitalização seria feita com reservas internacionais dos países e/ou com uma taxa sobre as exportações dos países para fora da região", escreveram Haddad e Galípolo.


Ainda conforme o artigo, cada país-membro seria creditado com uma dotação inicial de sur e as taxas de câmbio entre as moedas nacionais e a sur seriam flutuantes. Haveria ainda um mecanismo de ajuste entre países superavitários e deficitários, e os recursos provenientes desse instrumento seriam utilizados para capitalizar uma câmara de compensação, vocacionada a reduzir assimetrias entre as economias.


Bolsonaro e Guedes já defenderam criação de moeda única para Brasil e Argentina

Embora criticada por opositores do governo Lula, incluindo o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), a ideia de uma moeda única para Brasil e Argentina foi defendida no governo anterior pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e pelo ex-ministro da Economia, Paulo Guedes.


Ainda em 2019, em viagem a Buenos Aires, os dois debateram o assunto com seus pares na Argentina, Maurício Macri e Nicolas Dujovne. O tema também foi tratado com empresários argentinos e, nas reuniões, até um nome para a possível moeda foi sugerido: "peso real". Já no Brasil, Bolsonaro afirmou ainda que a ideia de criar uma moeda única poderia se estender a todos os países da América do Sul.


"Como aconteceu com o euro lá trás, pode acontecer o peso real aqui. Pode acontecer. É um primeiro passo", afirmou Bolsonaro na época. "Isso é algo que poderia acontecer em um prazo de 20 anos", disse Guedes.


O ex-ministro voltou a defender a iniciativa em agosto de 2021, durante reunião na Comissão de Relações Exteriores do Senado. "Poderíamos ter uma integração completa e, neste sentido, o Brasil assumiria uma função como a da Alemanha na Europa", disse. Ainda na ocasião, afirmou que a nova divisa que poderia ser uma das "cinco ou seis moedas relevantes no mundo".


Em maio de 2022, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, o ex-ministro citou a proposta mais uma vez ao falar sobre uma maior integração comercial na América Latina. "Eu acho que vamos ver, provavelmente, o peso real", declarou.


Nesta segunda-feira (23), Haddad deixou claro que a ideia do atual governo não se trata de uma moeda para substituir o peso e o real. "Meu antecessor defendia uma moeda única, não é disso que estamos falando. Não se trata da ideia de Paulo Guedes, se trata de avançarmos nos instrumentos previstos e que não funcionaram a contento", disse, em evento em Buenos Aires.


O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, deu declarações no mesmo sentido. "É justamente pela baixa conversibilidade do peso, e porque a gente entende que é difícil aceitar o peso no comércio internacional hoje, que está se pensando em outra forma de unidade de conta e de meio de pagamento", disse o economista em entrevista à GloboNews.


Unidade comum de troca permitiria proteger reservas de dólar

André Perfeito, que foi economista-chefe da Necton, vê a criação de uma unidade comum de troca como oportuna para que o Brasil lidere a organização econômica da América do Sul.


"A ideia é criar uma câmara de compensação entre os parceiros do bloco. Vendemos em reais e compramos em peso. Superávit de um financia o déficit do outro", publicou o economista em uma rede social. "Vamos supor que o Brasil tenha sempre um superávit contra a Argentina. Eles terão que pegar esse 'dinheiro' emprestado da câmara de compensação, que cobrará juros sobre esse valor", explicou.


Fábio Bittes Terra, professor de economia da Universidade Federal do ABC, também defende a iniciativa. "Os países membros trocariam nessa moeda e protegeriam, um pouco, suas reservas internacionais em dólar, ao não gastá-lo para trocas entre eles", escreveu.


Por não estar atrelado ao dólar, o comércio entre os dois países não seria prejudicado caso um deles tivesse esgotadas suas reservas cambiais, segundo Perfeito. "No limite, se o real se tornar a moeda mais forte do bloco, os argentinos terão uma dívida em reais. […] Moeda é crédito, ou seja, dívida. Se os países do bloco deverem em reais (mesmo que os juros sejam baixos nessa câmara de compensação), haverá uma influência decisiva do Brasil sobre os países do bloco."


Ainda segundo ele, se hipoteticamente a Argentina não conseguisse honrar a dívida, o Brasil poderia ser pago diretamente em mercadoria, com o governo argentino pagando em pesos o produtor. "Era exatamente isso que os chineses estavam fazendo com os argentinos: emprestavam em yuan, e se não pudessem pagar, os chineses pegariam em mercadoria."


"A vantagem dessa estratégia é que permite que se continue produzindo mesmo sem ter acesso a moeda referência (hoje o dólar)", explica o economista.


Situação econômica da Argentina inviabilizaria integração

Muitos analistas, por outro lado, veem a ideia com um pé atrás. "A criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina na situação atual é uma ficção", diz o economista Robson Gonçalves, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). "Boa parte das relações econômicas do Brasil com o resto do mundo e da Argentina com o resto do mundo é contabilizada em dólar, então é natural que o dólar seja uma referência."


Para ele, o fato de os países estarem em situações econômicas bastante distintas inviabiliza uma integração monetária, ainda que meramente contábil. "É como amarrar duas pessoas que seguem em passos diferentes", compara.


Gonçalves considera que discutir a proposta neste momento é como colocar "a carroça à frente dos bois". "Seria muito mais realista uma discussão que visasse revigorar o Mercosul", defende. "O Mercosul deveria ter tarifas externas comuns e, no entanto, está cheio de exceções. Uma pessoa que se desloca do Brasil para a Argentina ainda tem alguma burocracia, os fluxos comerciais ainda são restritos", exemplifica.


"Nós estamos muito distantes da Europa, que levou quase 40 anos para criar uma moeda comum, até que todas as economias estivessem mais ou menos andando no mesmo passo", diz.


A opinião é a mesma de Cláudio de Moraes, professor de macroeconomia e finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "A integração monetária é muito interessante, mas exige uma disciplina fiscal, monetária e uma equivalência entre países muito grande. É o final de um processo, não é o início."


Diante do contexto atual, o economista avalia que a iniciativa beneficiaria mais a Argentina do que o Brasil. "Quando você faz um acordo desse tipo, a intenção é não ter que, pelo Swift [sistema de transações financeiras internacional], fazer a transação via dólar e depois na moeda local", explica.


"Para a Argentina, que está vivendo uma crise com o peso, buscar contornos comerciais que possam fugir do dólar faz todo o sentido", diz Moraes. "O Brasil talvez teria a vantagem de diminuir o custo de transação, mas ainda é uma coisa muito preliminar, uma estrutura muito complexa e um parceiro comercial que, embora tradicionalmente seja importante, está sofrendo um momento econômico gravíssimo exatamente na sua própria moeda."


Moraes considera que a proposta não deve vingar. "Honestamente eu não acredito que isso vá acontecer, nem avançar além de uma boa intenção."


Stablecoins: como funciona o modelo que pode ser adotado por Brasil e Argentina como moeda comum


As stablecoins foram criadas para unir a agilidade das moedas virtuais com a confiabilidade do “mundo real”, evitando a volatilidade desenfreada das criptomoedas como o bitcoin. 


Em sua primeira viagem internacional desde que tomou posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmou que Brasil e Argentina estão trabalhando para a criação de uma moeda comum a ser usada para trocas comerciais e fluxos financeiros entre os dois países.


O projeto não visa substituir o real e o peso argentino por uma outra moeda corrente, como acontece na Europa com o euro. A ideia é adotar uma referência comum para que os dois países dependam menos do dólar em suas transações internacionais.


Mas como isso seria feito? Em entrevista à Reuters, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, citou um típico específico de recurso que pode ser adotado para que a parceria aconteça: uma stablecoin.


Mas afinal, como funciona esse tipo de moeda virtual e como ele poderia ser usado no desenho de uma moeda comum entre o Brasil e a Argentina?


O que são as stablecoins?

Como indica a tradução direta do termo, as stablecoins são “moedas estáveis”: ativos digitais, ou criptomoedas, lastreadas a algum outro ativo estável já presente na economia. As stablecoins podem ter como lastro uma moeda já existente, como o euro ou o dólar, ou até metais preciosos, como é o caso do ouro e de outras commodities.


Com isso, essas moedas digitais têm um valor estável fixado ao valor de ativos reais, o que as torna menos voláteis e menos e sujeitas a especulação.


Quais são as vantagens das stablecoins?

As stablecoins foram criadas como alternativa às criptomoedas sem lastro, como o bitcoin, que fizeram sucesso mas se mostraram extremamente instáveis e voláteis, afastando parte dos interessados em utilizá-las.


Com as stablecoins, se pode ter maior previsibilidade sobre investimentos e seu valor futuro, mas sem perder a agilidade de um ativo digital. “Eles visam oferecer todos os benefícios das criptomoedas enquanto tentam evitar a volatilidade desenfreada”, explica Dan Ashmore, analista financeiro especialista em criptoativos, que contribui para a Forbes do Reino Unido.


Entre as stablecoins com mais volume de negociação, estão aquelas que são lastreadas no dólar americano. Mais recentemente, passaram a se destacar também as que se fixam ao ouro. O governo brasileiro não deu indicação de qual seria o lastro da stablecoin imaginada no caso da parceria com a Argentina.


Que tipo de stablecoins existem?

São basicamente dois, de acordo com Ashmore:


Stablecoins colateralizadas: são as que ficam lastreadas a uma quantidade de recursos delimitada, que supostamente garante a sua liquidez. Ou seja, no caso de uma moeda atrelada ao ouro, se uma certa quantia dela é usada numa transação, a quantidade correspondente de ouro é tirada das reservas.

Stablecoins algorítmicas: Essas stablecoins têm seu valor determinado por algoritmos que, em tese, controlam o volume seguro da moeda a ser disponibilizado conforme as condições do mercado.

Stablecoins e CBDCs são a mesma coisa?

Quando governos utilizam esse tipo de criptoativo, ele costuma ter um nome diferente: Moedas Digitais de Bancos Centrais, conhecidas pela sigla CBDC, referente às iniciais da expressão em inglês.


A CNBC explica que os CBDCs são ativos digitais semelhantes às stablecoins, à medida que tentam juntar a agilidade das transações digitais com recursos para evitar que a moeda ser torne muito volátil. Mas com a principal diferença de que seu lastro está na moeda nacional, com a confiabilidade da instituição monetária e das regulações do país em questão.


Gabriel Galípolo não disse como seria o uso de stablecoins no caso do Brasil, e se aconteceria no modelo de CBDCs. Mas o Banco Central brasileiro já vem estudando a criação de uma moeda digital para o Brasil e de uma regulação específica para ela há algum tempo.


Então critpoativos como stablecoins e CBDCs não têm risco?

Não é bem assim. Segundo Ashmore, o lastro em matérias “reais” não garante a confiabilidade de uma stablecoin. Uma dessas moeda pode até ser colateralizada em certa quantidade de ouro ou outro ativo “real”, mas, se a operadora da moeda não for transparente quanto às suas transações, é difícil garantir que ela não possa simplesmente derreter.


Já as stablecoins algoritimicas são, por definição, baseadas em algoritmos e smart contracts cujo funcionamento nem sempre é claro, e podem estar mais sujeitas à especulação.


As CBDCs, por sua vez, estão sujeitas à reputação e ao grau de governança do Banco Central que a emite. Além, é claro, do seu uso pelo governo em questão.


Ou seja, sempre há algum risco envolvido, embora ele pareça ser bastante menor do que comparado às criptomoedas sem lastro algum.

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